Cheiro de mar. Faíscas do Sol refletindo das ondas ao meu olho. Tanta luz... Ele, à frente. Coroado de dourado pelos raios ofuscantes. Ele, como num sonho...
O sonho...
Então, ele, entrando naquela nuvem de sangue - eu a farejei desde o portão do Forte, e isso é mau, acredite: uma dezena de corpos em frangalhos. Por baixo. Um daqueles espetáculos... Ele, à frente, sem diminuir o ritmo. Apressei-me. O Universo ferido em possível contra-ataque. Sem idéia do que encontraríamos, mas ele, simplesmente, enfiou os pés. Desespero. Passo sobre todos os protocolos de Infiltração.
(Estou rindo - preciso registrar aqui: tornei-me um suicida!)
Em rasante, nós dois, para dentro. O fedor... Meus tendões todos exigindo-me. Vermelho. Exigindo-me. Vermelho. Assovios de ordens. Meus músculos pedindo, suplicando. Solte-nos e faremos o que sabemos fazer de melhor!... Vermelho, cortante, martelando minha cabeça, de novo e de novo. "SANGUE SANGUE SANGUE"
Agarrei-me a vocês. O abraço morno do menino. Os olhos dele no meu. A mão do Padre erguida em benção... Enforquei minha vontade, puxei-a de volta ao meu objetivo ali: protegê-lo, investigar, achar sobreviventes, impedir que algum perigo saísse da embarcação. Porque lá fora está o tesouro dele. Então aquele inferno não vazaria dali...
Impaciência.
Ruídos metálicos da carcaça do cargueiro. Marulhos. Vozes lá fora, distantes. Dois corações, à frente, e seus passos marcados estalando o piso. Um silêncio rasgado por um roçar suave. Depois, um gemido baixo, abafado. Sem aguardar confirmação ele lança-se para lá.
(Não, ele não tem nenhum senso de auto-preservação... Não, não admito que você zombe dele por isso...)
As formas dela surgem da lona. Como as estátuas do prédio da Corporação. Branca marfim. O cobre deslizando pelos fios de seus cabelos. Corro o olhar por ela. O máximo na mínima fração de segundo.
Percebo. Gazes sujas amarrando seus seios. Sem armas. Sem equipamentos. O sangue deles. O fedor dos mortos. E nada explicando como ela conseguira...
Compreendo. Ela é muito mais perigosa.
Um gosto de chumbo... A mato se... Ela treme nos braços dele, ele a analiza. Questiono-o, sou óbvio, quando ele a entrega a mim. Mas eu já sabia o que ele iria decidir... Ele é assim. Peso suas palavras... Aceito... por agora.
Quem é ela?... Com certeza não uma donzela em perigo...
Levo-a ao soco do ar fresco, frio e súbito. Maresia... Atenção em cada variação de sua pressão sangüínea. Cada curta contração muscular. Na cadência de seus pulmões. E muito depois percebo que estava relaxando, acreditando, embalado por aquele ritmo que tentei ignorar em vão: duas batidas. Duas... Dois corações pulsando nela... como nele...
Meus muros, outra vez. Gostaria de poder arremessá-la para o outro lado daquele Oceano. Ao invés disto, recubro-a com meus braços, ocultando sua nudez devastadora com a decência de minha silhueta, emprestando ao seu corpo gelado e desprotegido um pouco de calor. Protegendo-a...
Tarde para rebelar-me: minha guarda estava tão aberta... Ela me golpeia: reclama de dor. Olhei-a fundo. Quis saber que ferida era aquela. Ela afunda-se, rui ali, junto de mim. Não sou bom com pessoas. Fiz o que pude. Reparto com ela uma das poucas doses de VioletLicor O - irá sedá-la até que a cura venha. Suspeita de mim, eu notei. Previsível...
Invento algo para tirar os humanos da área quando nos acodem. Não tenho certeza de nada. Mas ela sobrevivera ao que os outros não. Ela é diferente deles. Será a causa daquilo?... Não ter sido hostil contra nós não é álibi. Não posso feri-la ou perturbá-la. Drako a pegara em seus braços. Não posso usar nela meus métodos.
Ele volta, espero dele um esclarecimento... Somente mais perguntas... E após cada uma: nada. Só amnésia. Linhas negras entre eles no som de suas palavras. Ele está pesado de fracasso. Sua frustração transborda de sua língua, de seus olhos gelados. O sonho, nítido demais: "não podemos salvar a todos". Isso doía nele, isso o revoltava - até mesmo contra ela. Mas só por um instante e ele perdoaria. Ele está empenhado em algo muito mais importante que julgamentos. Ele é assim. Traços de azul e dourado...
Ane Marie... ela tem um nome humano... Ele fala o que eu mesmo havia pensado, selando nossa decisão: ela fica conosco, e se mexer com essa gente... É o mais certo... Uma vez isso posto às claras, se vai.
Eu a sós com a esfinge, de novo. Ela veste-se, os gestos convulsionam minha pulsação. Todos seus perfumes secretos abrindo-se num buquê. Pequenas flores brancas entremeadas em corpos abertos... Seguro-me. Meu coração recua para seu batimento monótono, quase morto... Ela tem que falar... E agora o Santo aparece... Isso complicaria tudo - e ele não podia ficar ao alcance dela. Satisfaz-me quando ela recusa sua oferta de ajuda - o expulso sem demora.
Mais afiado, inicio nossa conversinha - quero destrinchá-la até ser saciado...
[2ª versão, editada em Agosto, 23, 2008]
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