Estas frases são para você,
Ace.
Começamos mal. Quero corrigir isso - preciso que me dê outra chance. Antes que desista de ler, pense: "Posso descobrir os podres deste monte de estrume". Refaça comigo nossa história - e pense que eu mereço o descrédito, mas que o amanhã pode ser diferente.
O início, eu lembro, claro como corte de navalha: chovia muito, amanhecia. Voltava de minha ronda rodeado pelo silêncio, sondando, sondando o nada, paranóico - dormia e comia há quase um mês sob o teto do Santo e ainda esperava a invasão da Shinra àquele santuário. Senti teu cheiro ao alcançar os degraus - na maçaneta. Adrenalina e programação, coisas que você desconhece - e que permaneça assim.
Invadi por uma clarabóia no teto da ala oeste. Passei pelos mesmos vultos e sons. Saquei Banshee, o chão não gemia. Te encontrei aos pés do altar-mor, enrolado num cobertor escuro, ressonando - as costas contra a parede.
Tenho certeza que lembra... Uma faca na jugular e um sujeito estranho sussurrando perguntas em tom de ameaça é algo que fica na memória... Entenda, agora: o confundi com um de nós. Foi o cheiro - como uma assinatura inconfundível: a carne dos CANNIBALS. Não fui lógico, não fui racional - nunca fui bom nisso - devia ter percebido que tu não poderias estar ali para me interceptar: novo demais, relaxado demais, desprecavido.
O Padre me deteve aquela manhã - você me perdoaria, porque eu teria acabado com você? - ele te salvou. Por um triz... Foi a firmeza dele, seus argumentos claros, o tom calmo, que me desarmou.
Desde então você virou uma charada para mim. Uma coisa obscura, que ia e vinha em meus pensamentos, quando eu estava desocupado. Admito: havia algo, rastejando, sob camadas e camadas de negações, lá embaixo, em meu peito. Uma desconfiança... Era a cor da tua pele à luz das chamas - que quase igualava-se a pele dela na luz pálida do alvorescer, mais ambarina - ou a forma dos teus olhos e o jeito de me espiar por eles - quase aquele mesmo medo furioso que via nos olhos dela. Eu bloqueava tudo. "Impossível..." Roía meus dentes e farejava o cheiro meu e dela em ti, teimando - "Loucura, estou delirando..."
Saiba que nunca acreditei ser seu pai. Pelo que sei, devia ser estéril... E não fui alertado de sua concepção. Não tenho instinto paternal. Esse novo papel é um desafio rumo ao desconhecido e ao improvável. Não tive qualquer treinamento.
Cubri minha ignorância acompanhando a rotina das poucas famílias que cruzaram por mim - Drako e Uriel são minhas referências favoritas. Mas também aprendi com o garoto de saias que cuida de tantos pirralhos. E observei alguns em Condor Fort e antes, nos Slumps...
Hah... Imagino... Deve ser difícil agüentar ler isto... Ok. Não estou querendo simplificar nada com palavras. Nem buscar justificativas para te coagir a me desculpar. Não. Isso é minha forma de compartilhar. Minha forma de retribuir as informações sobre você e sua mãe com as quais me presenteou, mesmo que acreditasse estar me golpeando, mesmo aos gritos e empurrões.
Acredite. Quando relembro, gostaria de refazer tanta coisa. Acredite que é uma honra que não mereço: ter a você como filho. E me assusta o fato de que você deixou a segurança da sua família para juntar-se a mim - foi tolice...
Linhas que falam por atos - não é meu estilo. Desta vez, é o que posso oferecer, minha missão me leva para longe de ti. Rude, mas verdadeiro: não estou fugindo deste compromisso. Estou assumindo algo maior - quero abrir para ti um novo futuro. Talvez seja arrogância...
Confia em mim. Faço isso para te proteger. O que tenho de fazer deve ajudar Drako e os que estão com ele a salvar nosso Planeta. Não posso parar, não posso esperar. Um dia, quem sabe?
Sobre tua mãe e eu. Ela me foi dada. Naquele dia, ela era mais criança que você. Pequena, magra, abafada pelo peso dos tecidos luxuosos e hipnóticos com que a embrulharam para mim. Eu cheguei, coberto ainda de sangue, ofegando ainda da ação. Ela estava lá. Mais um móvel em meus aposentos... Bastou-me saber: é minha, meu prêmio por ter superado as previsões planificadas. Cruel - mas de praxe em nossa divisão: todos os colegas mais velhos tinham escravas. Não questionei. Jamais soube de onde viera ou como fôra escolhida. Como fôra trazida para ali. Uma lacuna que hoje me atormenta. Você saberia isso?
Fui imoral - não, melhor: amoral. Ela não significava "amada", "amante", nem sequer "indivíduo". Eu não a tinha como uma igual - ela era minha propriedade, um objeto utilitário. A esfregava na cara dos meus rivais do CANNIBALS - ela era a prova em carne do quão rápido eu subira, um troféu pelas minhas realizações. Era minha boneca em todos os jogos... Além disso, sustentava minha existência vazia com sua presença firme e determinada. Sintonizada comigo, como eu jamais valorizei antes... Cozinhava. Ouvia. Cantava e dançava frente ao meu tédio. Posava nua quando eu voltava semi-catatônico. E eu? - despejava nela o mais escuro de mim, vomitava nela o que me corroía, sem piedade, aos berros, aos empurrões, machucando.
Raras vezes... permitia-me usá-la como abrigo. Era quando mais me constragia... Era quando só podia haver ela e suas mãos pequenas e macias, sua voz numa melodia suave, seus olhos, fortes e doces, a batida de seu coração me acolhendo num abraço... O mundo se dissolvia e eu ficava em branco.
Errei tanto com ela e de tantas formas e com tanta veemência... não entendo como ela pôde ainda me aguardar e desejar que eu a buscasse!... Ela parece não ter lhe contado as piores coisas sobre mim - não mereço que ela calasse meus pecados... Te confesso: fui vil - tentava torcê-la quando ela abria a guarda e se importava comigo ou nas horas em que eu me sentia transformado por ela. Quis quebrar seu espírito. Ela jamais deixou: até o último olhar que trocamos, ela mantinha-se sem baixar os olhos, indomável, majestosa, digna, confiante, íntegra.
Quando ela se foi - deixa te contar isso, sem maquiar nada: não senti falta. Não no momento. Cheguei tarde e caindo de cansaço. Uma outra fêmea, nua e com um largo sorriso branco, me esperava no lobby... Decepção e curiosidade - tesão. Foi assim. Eu a tomei na mesma cama, com o mesmo intento e adormeci da mesma forma. Sequer procurei sua mãe nos cômodos - antes ou depoi - para certificar-me dela não estar me evitando, por alguma birra e se ver assim trocada - e sabia o quanto ela detestava quando eu subia em outras mulheres. Foi assim: sem despedidas, sem explicações de ninguém, sem bilhetes ou rastros...
O incômodo - que somente conversando com o Santo identifiquei como "saudade" - cresceu ao longo de várias missões e seus breves momentos de descanso, quando à minha espera estava somente aquela outra, neutra, disforme e insossa. Nem assim pesquisei seu sumiço ou seu paradeiro. Questionar não fazia parte de minha rotina. Hoje sinto que ela me deixou esse oco, aqui, bem dentro. E não há outro que preencha isso...
Sei pelas tuas palavras o fim dela... Porque a jogaram aos Prostíbulos? Foi porque ela engravidou de mim? E como ela pôde? Por que se esforçaram em acobertar isso e por que iriam permitir que você saísse da vigilância deles? Nunca soube de nada assim. Não entendo o que lucrariam...
Tuas experiências contadas entre lágrimas e xingamentos ficaram bem gravadas em mim. Me provoca mal-estar saber que não estive lá para te apoiar, nem para ela. Que eu sequer pensava em vocês. Não há como amenizar isso. Também não há trilha de volta, conserto...
As feridas - temos algumas em comum. Talvez um dia possamos falar disso, talvez um dia possa aliviar minha memória contigo. Porém você viveu coisas que jamais experimentei: teve uma mãe e depois a perdeu, foi oprimido sem saber como se defender, roubou só para ter o que comer sob culpa. Sim, fui oprimido - mas não era indefeso. Sim: eu roubei, lutei, apanhei e mesmo matei para ter o que comer, para sobreviver e comer - mas sem culpas, e depois por orgulho.
Se pudesse estar ao teu lado... Nenhuma mão chegaria em ti. Seria teu telhado na chuva. Teu cobertor no frio. Teu guia quando estivesses perdido. Teu companheiro se sentisse-se só. Tua mão jamais se sujaria, pois não te faltaria o que comer. Nem para quem voltar...
Se eu voltar e você estiver me esperando...
aquele que chamam por Ash.