Era uma madrugada insossa e molhada. A água repicava no gorro da capa de chuva do meu technoprene. O tamborilar contínuo ecoava o das poças, o das placas de metal enferrujado, e me levava a um estado de frenesi meditativo. Via formas correndo entre os monturos. A água escorria em bicas dos meus braços, das minhas costas. Um pensamento vazou: podia estar seco sentado lá na Igreja ou deitado num putedo...
Mas foi nesse instante que você se pronunciou, e eu te achei. Foi por acaso, poderia não ter passado por aquela pilha de lixo. Curiosidade, e não piedade, ou qualquer outra coisa, foi o que moveu meus braços para te desenterrar dali. Você não entende isso, não é?
Para seus olhos de criança, eu sou seu Salvador. Mas basta um tanto de inteligência, basta uma pitada de sabedoria qualquer, para ter certeza de que não sou como aquele na Cruz. Não. E eu abomino essa tua gratidão, garoto. Detesto quando me leva regalias. Me incomoda quando gasta tuas frases infantis comigo. Você insiste. Tuas mãos pequenas procuram brechas para me atingir - não quero que me toque. Você me causa ganas! Eu não sou teu herói!!!
... Pedi ao Santo que o mantivesse longe de mim, que cuidasse da tua segurança. Ele não me responde, simplesmente esboça um sorriso, como se tivesse me vencido. No que?!... Talvez ele confuda meu silêncio, meu descanso, com mansidão - e isso seria um grave erro.
Te dou as costas. Berro contigo. Mostro os dentes. Se afaste de minhas garras, fedelho! Para que saiu daquele lixo se agora testa tua sorte comigo? Não quer ficar velho, idiota?!
Do meu canto eu escuto tuas lágrimas no assoalho da Igreja. O ruído delas é doce e singelo, ninguém além de mim mesmo para escutá-las. Tuas palavras solitárias, tu as dirige para aquela coisa de pelúcia imunda e esfarrapada que te dei. Acho que ela também não pode te dar nada, pivete. Sequer te ouvir. Mas ao final, ressonas abraçado nela... Inexplicável... Qual consolo retiras do vazio?
Fecho o olho. No escuro de minha mente, você sempre me ataca de novo. Sinto meus músculos contraídos tentando escapar ao teu corpo frágil, implodidos para dentro, soterrando meus sentidos, sentimentos.
Arfo cada vez mais pesado, tu me pressionas com a tua inocência, com tua carência tão extrema. Sei que vais morrer. Sei. Sei disso a cada batida do meu coração e do teu. Sou o único que pode... o único para te estender a mão ou pode ser tarde demais. Sei. Sei disso. O sangue escorre de mim, como se a chuva o fizesse brotar de minha pele. Sangue de todos aqueles que me afirmaram quem sou. E você ainda, ainda me olha pedindo, pedindo tão aberto, sem defesa alguma, sem chance alguma.
Eu vacilo. Como vacilei naquela noite. Me deixo confundir. Eu atravesso a soleira da porta. Eu me atiro de costas no penhasco. Emerjo do mar revolto, afogando, sendo levado, mas você está em meus braços. Tento deixá-lo acima das ondas, estou descendo. Você se recolhe contra mim e eu puxo forças e nado, nado até que meu corpo esfrie. Estou morrendo, mas você beija meu rosto cínico e gelado. A água invade meu peito, mas estou calmo, você ainda acarinha meus cabelos. Me olha até o cerne enquanto apago e te escuto dizer "sou eu que te salvo".
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Now playing: Yuki Kajiura - Echoes
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{ ... in a world of carbon fields, acid rain and rusted iron limbs, our kisses are just holographic designs floating over the cold network... there are no more prays to be listen... shallow oiled minds... his blood... so so green... as a revenge of nature growing inside his toxicated bones... as a sick thin hope to our lost souls... }
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